Essa moça tá diferente...

Eu estava começando a escrever outro texto, outro devaneio bobo, quando minha mãe me pediu para ir entregar o cheque do condomínio para o síndico. E lá fui eu, um andar para cima, tocar a campainha do apartamento dele e ficar esperando os segundos necessários até que alguém, do outro lado, gire a chave e abra a porta para me receber. Mas dessa vez esses segundos me pareceram bem mais do que apenas segundos. E me pus a pensar. Pois é... eu estou com vinte anos! Há sete anos eu repito esse trajeto: subir um andar - tocar a campainha – descer um andar. Sete anos olhando para frente, para mesma porta de mogno escuro. E essa mesma porta também me vê, e me viu crescer. Viu a Manuela de franjinha, e viu a Manuela de cabelão. De uniforme de escola, cansada de tanto ouvir sobre Combinatória e Revolução Francesa; e me vê preocupada com o jornal que é para entregar na semana que vem. Me recebeu de vestido florido, ainda sem alcançar o olho mágico e agora me encontra dois palmos mais alta - e ainda mais um, por culpa do salto alto. Além de me ver, ela me sentiu. Triste, feliz, preocupada, boba, insegura, inocente, apaixonada, com dor-de-cotovelo, alegre, pensativa, arrependida, vingativa, irritada, decidida, decepcionada, orgulhosa, animada e tantos mais sentimentos existirem nesse mundo, podem acrescentar nessa lista que eu senti. Porque não foi apenas a altura do meu olhar que alcançou o olho-mágico, nem o meu corpo que desenvolveu, muito menos os dígitos do campo "idade" que aumentaram. Eu mudei mesmo - e como mudei - foi aqui dentro. E essa porta, que recebeu a menina-Manuela, aquela menininha calma, do sorriso tímido e da franjinha de lado, meio que insegura, com aquela inocência de quem não conhece nada da vida, tocando a campainha com delicadeza de princesa, de menina mesmo, agora vê tocando a campainha, com decisão, a mulher-Manuela, que já não se esconde por detrás de franja, já não tão insegura, nem tão inocente, nem tão tímida... Mudei, cresci, amadureci. E apesar de já poder ter conta no banco, dirigir, votar, assinar papéis e entrar em boates e shows; e até mesmo depois de já ter me decepcionado, chorado, tido raiva de tudo e de todos e descoberto que nem tudo é como deveria ser, eu continuo enxergando o mundo com os mesmos óculos cor-de-rosa da inocência típica de meninas. Porque, no final das contas, eu continuo sem conhecer nada da vida... e com mais vontade ainda de saber tudo o que ela tem a me oferecer. E, diga-se de passagem, algo me diz que não é coisa pouca não! Nesses segundos que me pareceram bem mais do que apenas segundos, me restou uma pergunta: será que a porta se orgulha da Manuela que me tornei - ou melhor, daquilo que estou me tornando?
Ah... mês que vem eu pergunto pra ela!

Hoje ficarei comigo

Hoje ficarei comigo, serei só minha. Não darei atenção ao exterior, ao modo de andar, de vestir... Serei eu e minha roupa, eu e minha vida, eu e minhas idéias, eu e eu. Não me preocuparei com o tempo passando, pois o usarei para viver na simplicidade franciscana. Não me aterei ao que o vizinho anda fazendo, ao que o amigo anda falando, ao que o presidente vai declarar. Hoje, só hoje, serei mais eu, com todos os desconfortos de afrontar o interior, com todos os medos de descobrir o impensável, de ver um(a) outro(a) eu talvez mais rude, ou quem sabe mais terno.
Hoje, somente por hoje, jogarei fora as regras e convenções para ficar comigo e com todas as minhas falhas, defeitos, qualidades, angústias, projetos, traumas. Gostarei de saber coisas que nunca ousei ver dentro de mim. Vibrarei com cada descoberta que desnudar meu eu. Me entusiasmarei por saber que dentro de mim há uma outra à espreita dos passos que dou.
Existe mais um ser que chora em silêncio pelos caminhos errados que trilho, que ri dos tropeços que poderia evitar, que festeja minhas conquistas, que até esquece que eu nem me lembro dele. Hoje, e por todo o hoje, serei eu e eu, sem me importar que reservarei 24 horas para viver, respirar, amar, vibrar, festejar e descobrir o eu escondido que segura minha existência interior para que a vida exterior pareça ser tão bela. Quem sabe, ao cabo de um dia inteiro dedicado a mim, aprenda um tiquinho sobre as coisas invisíveis que norteiam minha existência e, sem a qual, meu viver seria vazio, inconstante e insensato como havia sido até esse dia que consagrarei todinho para ser e viver eu. Só eu. Nada mais do que eu.
Na Foto: "Danoninho".

São Salvador

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente,
Pelas drogas inúteis, que abelhuda,
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus, que de repente,
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fôra de algodão o teu capote.

(Gregório de Mattos Guerra - O Boca do Inferno)